Os escombros da guerra no mundo

As ações de Israel em Gaza despertam o antissemitismo na Europa e atiçam ainda mais o fundamentalismo islâmico

O ÓDIO SE PROPAGA
Manifestantes queimam a bandeira de Israel em um protesto em Paris. A crítica a Israel se confunde com antissemitismo (Foto: Oliver Berg/AFP)

A escalada sem fim da violência do conflito entre Israel Hamas na Faixa de Gaza despertou um monstro que parecia adormecido: o antissemitismo. A cada novo bombardeio israelense a uma cidade de Gaza, a cada nova imagem chocante de crianças mortas no conflito e jovens feridos (segundo a última contagem, dos 1.460 palestinos que morreram no confronto, 263 eram crianças), mais e mais gente se volta mundo afora não apenas contra Israel, mas contra os judeus – e faz renascer o nocivo preconceito antissemita.

Os protestos contra as ações de Israel poderiam ser considerados normais, não fosse sua virulência. Atentados contra edificações judaicas na Bélgica e na França, ataques verbais e físicos contra judeus nas ruas de Berlim e propagação do ódio nas mesquitas europeias são motivo para alerta das autoridades na Europa Ocidental. Para não falar no que é dito nas redes sociais. Em Londres, 45 mil manifestantes se reuniram em frente à embaixada de Israel, cantando “Palestina livre” e exibindo cartazes com a estrela de davi riscada. Na França, jovens saquearam e incendiaram lojas judaicas num subúrbio de Paris. Tamanha a virulência antissemita, as autoridades francesas proibiram protestos anti-Israel, mas milhares de jovens manifestantes desafiaram o veto e confrontaram a polícia com pedras e garrafas. Na Alemanha, houve ataques a vários pontos de encontro de judeus. Em Wuppertal, no norte, dois jovens foram presos depois de atirar coquetéis molotov contra uma sinagoga. Os protestos foram tão intensos que a polícia alemã divulgou uma lista de proibições. As principais diretrizes eram: não queimar a bandeira de Israel; não gritar “morte a Israel”; e em hipótese alguma repetir slogans antissemitas, como um canto de rimas em alemão que se tornou cada vez mais comum em comícios pró-palestinos.

>> O Brasil deveria se envolver no conflito entre Israel e Hamas?

Sessenta e nove anos depois do fim da Segunda Guerra Mundial, o antissemitismo ganha novos matizes na Europa. Na última década, houve um espantoso crescimento de partidos ultranacionalistas. A crise econômica deu ainda mais fôlego a esses grupos e a seu racismo, camuflado de ceticismo com as políticas da União Europeia. Na Bélgica, na Holanda, na Suíça, na Áustria, na França e na Alemanha, partidos ultradireitistas ganharam relevância e ressonância para seu discurso de xenofobia e ódio contra as minorias – judeus entre elas. As recentes eleições para o Parlamento Europeu consagraram o nacionalismo exacerbado de partidos como a Frente Nacional, de Marine Le Pen, na França; o Partido da Independência do Reino Unido (Ukip), de Nigel Farage; os ultradireitistas nórdicos do Partido do Povo (o mais votado na Dinamarca); os Democratas Suecos; e o partido húngaro Jobbik, uma sigla abertamente inspirada no nazismo.

A ascensão desses grupos radicais de direita encorajou também neonazistas a colocar a cabeça de fora. Segundo uma pesquisa anual do Centro Kantor para Estudos do Judaísmo Europeu, da Universidade de Tel Aviv, os casos de antissemitismo no mundo cresceram 11% nos últimos dez anos – e tornaram-se mais graves. Há alguns anos, atos de vandalismo como pichações de cemitérios israelitas, escolas judaicas e sinagogas eram as formas mais comuns de antissemitismo. Em 2013, dos 554 incidentes registrados, 185 ocorreram diretamente com pessoas. Judeus passaram a ser agredidos fisicamente.

>> A guerra dos inimigos da paz

Para os neófitos que destilam sua ignorância nas redes sociais e até em artigos para respeitáveis jornais , falar do crescimento de antissemitismo em meio às mortes de palestinos em Gaza pode soar como uma espécie de manobra diversionista. Não é. O ano de 2009 registrou o maior número de atos antissemitas na Europa desde a Segunda Guerra Mundial. A maioria ocorreu no primeiro semestre, nos meses que se seguiram à Operação Chumbo Fundido, entre dezembro de 2008 e janeiro de 2009. Na ocasião, Israel desfechou uma ofensiva contra o grupo islâmico Hamas, que matou mais de 1.200 palestinos na Faixa de Gaza. “Nessas ocasiões, o antissemitismo se confunde com a crítica a Israel e com a questão israelense-palestina”, afirma o historiador Wolfgang Benz, diretor do Centro de Pesquisa sobre o antissemitismo da Universidade de Berlim. Em algumas manifestações na Europa, forma-se uma estranha aliança entre grupos de esquerda, islamitas e neonazistas. Todos caminham lado a lado. “Há aí um perigo evidente: o antissemitismo, disfarçado de crítica ao governo israelense, passou a ser socialmente aceitável”, afirma Benz. 

Na esteira do conflito, outro efeito colateral deletério desponta: o crescimento do ódio de árabes e muçulmanos contra Israel e do fundamentalismo religioso islâmico. Os pregadores do ódio encontram um terreno fértil entre os jovens muçulmanos, que enfrentam problemas de integração econômica e social na Europa. Na semana passada, o imã Abul Bilal Ismail divulgou na internet sua pregação na Mesquita al-Nur, em NeuKölln, um bairro no sul de Berlim onde vivem imigrantes muçulmanos. Ismail chamou Gaza de “o país da jihad” (guerra santa) e conclamou os muçulmanos de toda a Europa a “liquidar os judeus”.

A propagação do discurso de ódio não é responsabilidade apenas dos extremistas europeus ou dos críticos da ação do Exército israelense em Gaza. As razões para que ele germine também podem ser encontradas dentro do Estado de Israel. A maioria da população israelense está cansada dos ataques do Hamas e da discussão sobre os palestinos. Por isso, o apoio doméstico ao primeiro-ministro Benjamin Netanyahu para a continuidade da guerra em Gaza só tem crescido no decorrer das últimas três semanas. A sociedade e os políticos israelenses estão unidos no propósito de destruir a infraestrutura do Hamas. Uma pesquisa do Instituto de Democracia de Israel revelou que 95% dos judeus israelenses pensam que a operação em Gaza é justa, e quatro em cinco deles se opõem a uma retirada unilateral. Apenas 4% disseram que os militares israelenses usam força excessiva.  “Muitos israelenses veem toda essa hostilidade como o ápice de um longo processo de demonização e deslegitimação do direito de Israel existir”, afirma o pesquisador Amotz Asa-El, do Instituto Shalom Hartman, uma instituição de estratégia de Jerusalém. “Eles sentem que o mundo está contra eles e se unem ainda mais.”

Esse sentimento extremado – presente na sociedade israelense, mas também entre os seguidores do Hamas – é o motor da perenização do conflito. Nele, o povo palestino acaba sofrendo as maiores consequências. Há duas semanas, o secretário de Estado americano John Kerry conseguiu mediar um cessar-fogo de 72 horas, quebrado pelos dois lados menos de 72 minutos depois. Israel e Hamas não aceitam o fim do conflito. Cada lado tem seus motivos para isso. O Hamas palestino está isolado na região depois de perder apoio do Irã, da Síria e do Egito. Por isso, decidiu usar todo o arsenal acumulado nos últimos anos para tentar se fortalecer, ganhar a simpatia do mundo e dos próprios palestinos – e tentar vender o atual conflito como uma vitória. Para atingir esse objetivo, precisa reduzir a intensidade do bloqueio israelense a Gaza, região que governa desde 2007, antes de um cessar-fogo definitivo.

O governo israelense acha melhor seguir com a ação militar mais algum tempo, para enfraquecer o Hamas e eliminar o máximo possível de seus túneis. É uma tática conhecida como “cortar a grama”. De tempos em tempos, Israel ataca o grupo e destrói a infraestrutura do Hamas, de forma a aleijá-lo temporariamente. Na visão de Israel, o Hamas é como a grama: não pode ser destruída, apenas aparada antes de voltar a crescer. A política do “corte de grama” é central para o objetivo do governo de Netanyahu e da coalizão de direita e extrema-direita que ele lidera: manter o impasse, sem anexar os territórios palestinos – muito menos contribuir para a criação de um Estado palestino.

O círculo vicioso criado pelo conflito atual é muito mais daninho para Israel. Ao usar toda a sua capacidade militar para “cortar a grama” do Hamas, Israel se isola internacionalmente, desperta a ira de seus inimigos, põe em risco sua própria legitimidade e abre a caixa de pandora do antissemitismo. Até aliados históricos de Israel, como os Estados Unidos, têm sido mais críticos a essa última iniciativa militar israelense. “Mesmo tendo em conta a brutalidade do Hamas, nenhuma democracia deve ficar feliz com uma estratégia militar que resulta na morte de tantas crianças”, escreveu a revista britânica The Economist na semana passada. Talvez a melhor maneira de Israel aplacar o ódio aos judeus e arrefecer as crescentes críticas fosse seguir o ensinamento de Moshe Dayan, histórico líder político e militar de Israel: “A paz não se faz com os amigos, mas com os inimigos”. 

 Reportagem retirada da revista Época

Bibliografia:http://epoca.globo.com/tempo/noticia/2014/08/os-bescombros-da-guerrab-no-mundo.html 

Leave a comment